A Lei irracional da diagonal
Sejamos claros: atravessar a direito nas passadeiras – ou em qualquer outro
local – não dá gozo nenhum. Poderá ser: racional, consciente, de bom senso, e
até o pior que tudo: legal; mas não dá gozo. Nem um bocadinho.
Já atravessar na
diagonal uma passadeira equivale ao traque traquina do bébé: os pais enchem-se
de orgulho e as pessoas à volta elogiam e acham pilhas de graça.
Até na arte isso é assim: Mondrian é só linhas rectas, mas é chato, muito,
mesmo muito chato. É preferível mil vezes Klee, ou Kandinsky. Muito mais
emotivos, sonhadores, muito mais curvas do que rectas, muito mais nuances de
cor, e não apenas cores primárias aplicadas a régua e esquadro.
Não nos iludamos: quando se diz que A ou B fez mal em atravessar na
diagonal a estrada; metade na passadeira, metade na estrada, está-se a cortar a
criatividade dessa pessoa – é isso o que está em causa.
Porque as linhas rectas
não dão saúde a ninguém. As linhas rectas são o oposto da criatividade, seja no
meio de uma qualquer estrada, ou numa pintura. Só talvez em arquitectura elas
sejam preferíveis às curvas, e mesmo aí há dúvidas, como Hundertwasser e Gaudí
demonstraram de forma cabal e inequívoca.
Quando se critica uma pessoa dizendo: “- Olha ! Aquele descobriu agora que
o caminho mais curto entre dois pontos não é uma recta!”, está-se a afrontar o
direito de um bêbado a encontrar o melhor caminho para casa.
E, veja-se bem, o melhor caminho não é o mais curto; é, isso sim, o caminho
que o espírito toldado desse pobre homem encontrar, sendo que, qualquer que
seja a solução para esse problema, a criatividade foi estimulada, e não uma
resposta automática de pseudo- racionalidade, pré- formatada e socialmente
aceite.
E é por isso que as pessoas preferem passar fora da passadeira: é
preferível a quebra criativa da norma do que segui-la à risca.
Mesmo os polícias compreendem instintivamente este pequeno risco calculado,
e quando estão fora de serviço fazem o mesmo.
De facto, se é obrigatório atravessar na passadeira, ao menos que se siga
um caminho na diagonal – para quebrar psicologicamente a regra, e se possível
na parte final deve-se atravessar fora da passadeira, para demonstrar a
discordância total com esta norma do código das estradas.
A subversão das regras deverá ser a única regra:
“- Sou um cidadão que paga os seus impostos, tenho Bilhete de Identidade, pago as contas ao fim do mês, mas desta forma demonstro que estou fora do sistema – o sistema é burocrático ? – então esse sistema é dos outros, eu não lhe pertenço”
“- Sou um cidadão que paga os seus impostos, tenho Bilhete de Identidade, pago as contas ao fim do mês, mas desta forma demonstro que estou fora do sistema – o sistema é burocrático ? – então esse sistema é dos outros, eu não lhe pertenço”
Existe, em Portugal (e talvez em todo o lado) o horror à previsibilidade.
E, para evitá-la, os cidadãos tentam fazer no dia a dia pequenos gestos que
sejam únicos, pessoais e intransmissíveis.
Ama-se a criatividade, desde que essa seja expressa apenas em gestos
pequenos e aparentemente vulgares.
. Ser artista ? – Demasiado especial. Não pode ser. Tem de haver algo que
seja mais anónimo que isso.
. Ler livros sobre feitiçaria ? – Demasiado específico e até perigoso. Mais,
muito mais anónimo. Mas também muito mais reconhecido socialmente.
. Ser maestro de uma orquestra sinfónica ? – Muito elitista.
Atravessar as passadeiras na diagonal ? – É isso! Na mouche…
Comentários