Enquanto Freud dormia: a moda da esquizofrenia




É fácil catalogar alguém. Desde o primeiro momento, a primeira impressão diz (quase) tudo sobre determinada pessoa. É, repito, muito fácil. E é também fácil e rotineiro, para um psicanalista, rotular e medicar (ou "drogar"? - não tenhamos medo desta palavra, nem da expressão descompensação..) o seu paciente.

Mas, é obrigatório fazer os TPC. Sobretudo, no que diz respeito aos artistas. Nunca foi tão fácil indicar o caminho dos hospitais psiquiátricos a uma pessoa complexa ou estranha. E os artistas têm deixado que se instale na mente dos médicos a versão- loucura, em detrimento da versão- visão.

(Não é, Ângelo de Lima ? Não é, Arthur Rimbaud ?)

Na história da arte moderna existem casos que desafiam a tese de distúrbios graves e por toda a vida, com que apressados analistas da mente rotulam esses artistas.

Citando Antoni Tàpies: “Todo o artista genial tem tido e continua a ter relação com o mágico e o religioso, e não é raro que, por isto, tenha sido às vezes comparado ao santo, ao profeta, ou ao feiticeiro da tribo. O aprofundar da realidade requer um estado de angústia psíquica, de tensão espiritual, que é verdadeiramente comparável à daqueles.”

Não é fácil separar a loucura da genialidade. Não é fácil deixar a inveja artística de lado, e encarar de frente um artista de génio. E, no entanto, como seria simples dar o valor intelectual devido a um indivíduo que arrisca a sua vida (no dizer de Van Gogh), para encontrar pérolas, trabalho esse que lhe é destinado desde a nascença: a sua intuição, a sua vocação.

Qualquer bicho careta na comunicação social que vamos tendo, desde comentadores da bola a bloggers de moda falam em:

- Bipolar;
- Esquizofrénico;
- Esquizofrénico;
- Bipolar.

Expressões que entraram no léxico popular e que tornaram a ideia que se pretende transmitir completa e inacreditavelmente banal.

Tudo é bipolar; todos são esquizofrénicos; no dizer de muita gente pretensamente especialista em qualquer coisa, até os cães ou as árvores têm algo desta doença mental.


Entremos então no jogo a sério, e deixemos o jogo a feijões: comecemos pelos casos clássicos:

– Van Gogh (Antonin Artaud chamou-o de Suicidado da Sociedade;
este pintor dizia que o doutor Gachet era mais paciente e vítima do
que ele próprio…)
– Joseph Beuys
– Jim Morrison
– Joan Miró
– Antoni Tàpies
– Pablo Picasso

O que têm todos estes grandes artistas em comum?

– Duas coisas:

. Sofreram fases de doença mental/ depressões gravíssimas / visões
. São xamãs

Todos eles passaram por ritos de iniciação auto- impostos, todos eles atravessaram psicologicamente áreas espirituais subjectivas, que exprimem energias interiores de grande sensibilidade e força.

Para o antropólogo Piers Vitebsky, apenas a sociedade escolhe quem será herói e quem será louco, de entre um conjunto de artistas/ visionários: “Os xamãs são loucos por cortesia da cultura e nos termos dessa mesma cultura. Em último caso, é a sociedade que distingue entre o comportamento do xamã e do esquizofrénico ou do psicótico. Um transforma-se em herói e o outro em paciente de um hospital. O xamã vive à beira de um abismo, mas tem forma de evitar cair nele.”

É preciso, então, entender os sinais. Todo o trabalho mental do xamã é metafórico/ simbólico:

. Simbólico quando Beuys tentou curar a América (instalação com um coiote: “A América ama-me e eu amo a América”);

. Simbólico quando Picasso respondeu a um soldado alemão que eram eles que tinham criado Guernica, e não ele próprio;

. Simbólico quando Jim Morrison se deixou influenciar pelo espírito de um índio morto na estrada;

. Simbólico quando Miró pintou O Carnaval de harlequin com a inspiração da fome;

. e, finalmente, caracteriza a arte do artista mais abstracto dos abstractos Antoni Tàpies: muros, portas, escadas, caminhos, signos primordiais, etc.


Vitebsky, no seu livro essencial O Xamã, é taxativo, na destrinça entre esquizofrénicos e xamãs: existem causas, provocam efeitos (parecidos mas ao mesmo tempo muito diferentes): “O paralelo mais próximo para a loucura do xamã será talvez o estado clinicamente designado por esquizofrenia. (…) Todavia, as diferenças são bastante grandes, tanto psicológica como socialmente:

. Enquanto a atenção do xamã aumenta, a do esquizofrénico encontra-se difusa;

. Enquanto o xamã mantém um controlo de longo alcance sobre o seu próprio estado de espírito, a esquizofrenia determina a perda deste controlo;

. e, enquanto a experiência do xamã é sempre trazida de volta à sociedade e partilhada para benefício dela, o esquizofrénico está retido no interior da sua experiência privada, quase no ponto do autismo.”


Repito: todo o trabalho mental do xamã é simbólico: é feito de metáforas – como os sonhos. E actua na sociedade.

Citando de novo Vitebsky: “Qualquer que seja o modo como as pessoas de fora considerem o estado mental do xamã, as sociedades xamânicas vêem uma continuidade entre este estado e o do paciente e da sociedade, considerados como um todo.(…) Em vez de procurarmos uma instituição designada como xamanismo, a nossa atenção deve centrar-se na figura do xamã. O xamã liga entre si áreas como a religião, a psicologia, a medicina e a teologia, que, na literatura ocidental, se encontram separadas. Através das suas experiências individuais, os meios do xamã são psicológicos, mas os fins são sociológicos, para sarar e manter a comunidade.”


Portanto...

. Um assunto mais complexo do que muitos queriam ?

. Um tema mais profundo do que alguns pensavam ?

. Uma matéria onde as religiões primitivas têm uma palavra mais forte do que muitos defendiam ?

Aparentemente... SIM !


Enquanto Freud dormia… instalou-se a moda da esquizofrenia: é fácil, é barato, vai-se ao livro das doenças e dos medicamentos, receita-se alguma coisa para o paciente dormir muito, e...

- Ataca-se o efeito; e não a causa.


Enquanto sociólogo (o que sou), não posso mais calar a minha revolta pela hipocrisia das sociedades modernas, que dividem e rotulam todos os aspectos negativos da personalidade de um indivíduo como doenças do nosso tempo.

É que… só são doenças porque a sociedade diz que são…


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