De Miles Davis a Bin Laden
Quando Miles Davis lançou Kind of Blue, talvez não esperasse
vê-lo transformar-se, ao longo dos anos, no álbum mais influente do Jazz
Moderno. Davis pertence a uma tradição de um Século de Jazzmen de grande
qualidade, começando em Louis Armstrong, passando por Duke Ellington, pelo
grande Charlie Parker, Thelonious Monk, Oscar Peterson e finalmente o mais
místico e sublime de todos, John Coltrane. Miles, como genial trompetista que
foi, criou um som totalmente inovador e, pelo caminho, desceu à realidade, à
natureza e arrasou os floreados formais de um Bebop já algo cansado (que tinha
sido criado por Bird e Dizzie Gillespie). Através da melodia mais simples, do
sopro mais puro, do ritmo mais pausado que se possa imaginar: ali, não havia
rasto dos excessos inacreditáveis de um Parker, ou dos excessos rítmicos e
quebras bruscas do Free Jazz de um Ornette Coleman.
No entanto, ritmo pausado não quer dizer desatenção, perda
do sentido da realidade (que era, e é, vibrante de vida e… de morte); é
exactamente o contrário – o ritmo trepidante das urbes americanas produziu uma
nova respiração, calma, plena de sabedoria, neste mestre do Jazz.
Tal como Miles, também Bin Laden é filho de uma longa
tradição de profetas- guerreiros (de vários séculos e não apenas de um
século…), tradição essa que se baseia na sabedoria profunda do sentir do Povo
Árabe. Aos 23 anos sentiu a sua revelação, e aos 33 anos regressou ao País que
o viu nascer. Trata-se claramente de um Profeta com uma missão. É um Profeta da
destruição. Certa vez, em Jalalabad, convocou dois grupos de 3 homens para
defenderem as portas da cidade: todos eles, ao final do dia, tinham morrido…
Este ser humano não vacila perante a morte, e contam-se histórias
impressionantes sobre a sua frieza em pleno campo de batalha. Discordo sem
qualquer dúvida e hesitação dos meios utilizados, da ideologia na base destas
acções e dos seus resultados bárbaros e incompreensíveis, mas a eficácia sobre
os poderes adormecidos das sociedades contemporâneas é indesmentível.
É penoso ver o ridículo em que caem os líderes políticos
ocidentais que, esses sim, não representam absolutamente nada em termos de
valores espirituais profundos das populações que proclamam defender. Todos os
dias, de facto, dizem aos altos berros, em plena arena da comunicação social,
que irão combater o terrorismo. Acontece que o terrorismo só se combate
diagnosticando sociologicamente as suas causas e actuando directamente sobre as
mesmas, e não enviando as forças especiais e ambulâncias tratar das
consequências.
A comunicação social, por sua vez, tem desempenhado um papel
ignóbil: ao mesmo tempo que se tornou o verdadeiro primeiro poder em todo o
mundo ocidental, é a primeira a ridicularizar os líderes político- religiosos
árabes, fomentando o ódio inter- civilizações que é totalmente desaconselhável,
sobretudo nos dias que correm.
Tal como Miles Davis, também Laden é um homem de profundos
horizontes; tal como Miles, também ele improvisa, utilizando meios tão
destrutivos como criativos: Miles utilizava drogas e um trompete, Laden utiliza
bombas e fica à espera que a hipocrisia política ocidental faça o resto do
trabalho por si.
A questão não é a de saber como se vai matar este homem,
pois muitos outros se seguirão, após este exemplo de contra- poder aos
americanos dado de forma tão clara; a questão é a de saber se era expectável
este ataque maciço, após os EUA e os seus aliados de Israel terem tido um
comportamento de adiamento constante da estabilização política no Médio Oriente
na região e também nas Nações Unidas durante décadas e décadas.
A questão também se coloca em relação aos seus aliados
europeus, que estão agora entre a espada e a parede, ou seja, entre os
Tomahawks americanos e a previsível revolta árabe, que se intensifica após uma
guerra inútil e perigosa no Iraque, a partir de argumentos falsos como Judas.
Gostaria de terminar dizendo o seguinte:
Num jogo mental- que é o que Bin Laden está a fazer com o
mundo ocidental- utiliza-se o melhor jogador desse jogo, e nunca, mas nunca, se
envia um sniper para assassinar o outro jogador, pois isso revela medo, medo de
que o jogador oponente seja melhor, mais sabedor, e possa ganhar o jogo
seguindo as regras desse jogo. Trata-se de um jogo com regras relativamente
novas, sem dúvida, mas isso não justifica a falta de cultura dos americanos e o
seu comportamento de elefante- em- plena- loja- de- porcelanas.
Matar não nos vai fazer entender a causa do problema: é a
saída mais rápida a um nível puramente conjuntural, mas não é a melhor saída.
Para um problema como o terrorismo utiliza-se uma estratégia, e não uma mera
táctica. Este é um do ensinamentos militares básicos que os americanos teimam
em não compreender, infelizmente, para todos nós.
NOTAS IMPORTANTES:
Se este artigo tem alguma imprecisão factual, agradeço todos
os esclarecimentos;
Este artigo foi escrito antes do assassinato de Bin Laden, e
eu pergunto-te, caro leitor, se isso alterou alguma coisa…
Saiu aparentemente de cena uma organização terrorista e
entrou em cena outra.
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